O brilho do Cinema Paraense no FICCA
- Francisco Weyl
- há 3 minutos
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O Festival Internacional de Cinema do Caeté (FICCA) celebra dez anos com uma marca histórica: 18 filmes paraenses inscritos, número que coloca o Pará na liderança da edição de 2025.
Esse protagonismo não é casual: ele representa a consolidação de uma cena audiovisual amazônica, fruto direto das ações pedagógicas, formativas e mobilizadoras que o FICCA vem semeando ao longo de uma década em comunidades periféricas, ribeirinhas, quilombolas, indígenas e urbanas.
São produções que vêm de Belém (6 filmes), mas também de cidades muitas vezes invisibilizadas no mapa cinematográfico brasileiro, como Bragança (2 filmes), Tracuateua (2 filmes), Marapanim, Castanhal, Cametá e Viseu.
Esse movimento revela que o cinema não está mais restrito aos centros urbanos ou aos grandes estúdios: ele pulsa nas margens, nas aldeias, nos quintais, nas escolas públicas, onde juventudes experimentam a câmera como ferramenta de criação, resistência e liberdade.
No total, o festival recebeu 78 inscrições, com filmes vindos de 17 estados brasileiros e de cinco países (México, França, Espanha, Portugal e uma coprodução Colômbia-Bélgica).
Mas é a força local que dá o tom: o Caeté se transforma em um epicentro de narrativas amazônicas, projetando histórias que falam de ancestralidade, resistência negra, lutas feministas, juventudes periféricas e povos tradicionais.
As categorias com maior número de inscrições foram curta-metragem documentário (20 filmes) e curta-metragem ficção (16 filmes), formatos ágeis e acessíveis que dialogam diretamente com a realidade das produções comunitárias.
Além disso, 33 filmes foram inscritos na Mostra Cinema de Guerrilhas, dedicada a obras que emergem das lutas sociais e territoriais, enquanto 13 produções compõem a Mostra Negro FICCA, que celebra o cinema feito por pessoas negras ou que abordam as resistências afro-diaspóricas.
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Cinema paraense: da resistência à criação de uma cena
A explosão de produções paraenses no FICCA é resultado de anos de trabalho silencioso e contínuo, realizado através de oficinas, cineclubes e projetos formativos que levam o cinema a lugares onde historicamente ele foi negado.
As oficinas do festival — muitas vezes realizadas com equipamentos improvisados, em condições adversas — não apenas ensinam técnicas cinematográficas, mas também formam sujeitos críticos, capazes de pensar e disputar narrativas sobre seus próprios territórios.
Muitos dos coletivos audiovisuais que hoje inscrevem filmes no FICCA nasceram desses processos pedagógicos, provando que quando a periferia tem acesso à câmera, ela não só se vê na tela, como também passa a criar imagens que desafiam o status quo.
O protagonismo paraense nesta edição também sinaliza a construção de uma cadeia produtiva própria, onde jovens cineastas, produtores, roteiristas e técnicos surgem de dentro das comunidades, fortalecendo a economia criativa local.
Trata-se de um cinema profundamente enraizado na Amazônia, que não depende de validação externa para existir, mas que dialoga com o mundo a partir de suas próprias estéticas e narrativas.
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A tríade conceitual que sustenta o FICCA
O sucesso do cinema paraense não pode ser entendido apenas como resultado individual de realizadores talentosos.
Ele é fruto de uma metodologia coletiva desenvolvida por Francisco Weyl, criador e curador do festival, pesquisador do PPGARTES, e pela coordenação pedagógica do FICCA, formada por Rosilene Cordeiro, Marcelo Rodrigues e Roberta Mártires.
Essa metodologia se apoia em uma tríade conceitual que orienta todas as ações do festival: Estéticas de Guerrilha, Poéticas da Gambiarra e Tecnologias do Possível.
Estéticas de Guerrilha
No contexto amazônico, fazer cinema é um ato político.
As Estéticas de Guerrilha refletem essa dimensão, propondo narrativas que desafiam o silenciamento histórico de povos e comunidades marginalizadas.
São filmes que falam de juventude, ancestralidade, resistência indígena, lutas negras, feministas e LGBTQIAP+, feitos por quem vive essas experiências.
Cada enquadramento se torna um grito contra a opressão, cada montagem, um gesto de insurgência.
É por isso que a Mostra Cinema de Guerrilhas se tornou o coração do festival: ela celebra obras que não pedem licença para existir, produzidas com paixão e coragem, mesmo em contextos de escassez.
Poéticas da Gambiarra
Se a guerrilha define o porquê, a gambiarra define o como.
Nas oficinas do FICCA, a falta de equipamentos nunca foi um obstáculo. Celulares, lanternas, lençóis e microfones improvisados se transformam em ferramentas narrativas.
Essa precariedade não é vista como limitação, mas como matéria-prima criativa.
As Poéticas da Gambiarra mostram que a potência estética de uma obra não depende de recursos milionários, mas da urgência de contar uma história.
É nessa lógica que jovens realizadores aprendem a reinventar técnicas e linguagens, criando filmes que carregam a identidade do território.
Tecnologias do Possível
Por fim, as Tecnologias do Possível são estratégias que expandem os limites daquilo que parece viável.
Elas unem saberes ancestrais e inovação contemporânea, criando ferramentas coletivas para sonhar e realizar.
Cada oficina se torna um espaço onde o impossível se torna palpável: uma câmera vira instrumento político, uma sala de aula vira estúdio, uma praça vira set de filmagem.
Mais do que formar cineastas, o FICCA forma comunidades inteiras capazes de disputar políticas públicas e construir redes solidárias de produção cultural.
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Entre o local e o global
Embora profundamente enraizado no Pará, o FICCA é um festival internacional.
Ao lado das produções amazônicas, filmes vindos de outros países compartilham a tela, criando diálogos horizontais e solidários.
Essa dimensão global não serve para hierarquizar, mas para conectar lutas: as histórias de resistência amazônica encontram ecos em experiências de comunidades africanas, latino-americanas e europeias.
Assim, o festival descentraliza o audiovisual, propondo um modelo alternativo ao mercado, que muitas vezes explora as periferias sem lhes dar voz.
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O júri: olhar estético e político
Agora, as 78 obras seguem para análise da Comissão de Júri Oficial, composta por artistas, realizadores e pesquisadores do Brasil, Portugal, França e Alemanha.
Entre eles, nomes como Sérgio Santeiro, mestre do cinema experimental brasileiro, e Miguel Haoni, crítico francês, garantem uma avaliação que vai além de aspectos técnicos.
O júri está alinhado à missão do festival: valorizar obras que rompam hegemonias narrativas e tensionem as fronteiras do audiovisual, reconhecendo o cinema como “ato de resistência, território de disputa e instrumento de reimaginação do mundo”.
Os filmes selecionados serão divulgados na segunda quinzena de setembro e exibidos entre 8 e 10 de dezembro, em sessões presenciais e virtuais.
Os vencedores receberão o Troféu FICCA, símbolo de uma década de luta por um cinema livre e plural.
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Uma década de insurgência amazônica
A presença massiva de filmes paraenses nesta edição comprova que o FICCA não é apenas um festival, mas um movimento cultural.
Em dez anos, ele ajudou a construir uma cena audiovisual amazônica sólida, baseada na formação contínua, na coletividade e na resistência.
Cada filme inscrito é mais do que uma obra: é um ato político, um testemunho da capacidade das comunidades amazônicas de narrar suas próprias histórias e de disputar o imaginário global.
Manter um festival independente, comunitário e pedagógico em tempos de retrocessos culturais é, por si só, uma vitória.
E essa vitória não é apenas do FICCA, mas de toda a Amazônia, que agora ocupa o centro da tela com suas vozes, suas imagens e seus sonhos.
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O futuro em construção
Ao completar dez anos, o FICCA olha para frente com a mesma ousadia que marcou sua origem.
As Estéticas de Guerrilha, as Poéticas da Gambiarra e as Tecnologias do Possível seguirão orientando novas oficinas, novos cineclubes, novas insurgências.
Porque o cinema paraense que hoje brilha no FICCA não é um ponto de chegada, mas o começo de uma revolução audiovisual.
Uma revolução que nasce nas margens, mas que se espalha pelo mundo, provando que outros cinemas são não só possíveis, mas urgentes.
O FICCA é o rio que carrega essas imagens insurgentes.
E, como todo rio amazônico, ele segue em movimento, abrindo caminhos, rompendo barragens e levando consigo a força de um povo que insiste em sonhar e filmar.
[Por Francisco Weyl, carpinteiro de poesia]

REALIZAÇÃO: X FICCA – Festival Internacional de Cinema do Caeté / Arte Usina Caeté
PATROCÍNIO: Governo Federal/Ministério da Cultura; Governo do Pará/Secretaria de Cultura/Fundação Cultural do Pará, através da PNAB e Lei Semear; do Instituto Sustentabilidade da Amazônia com Ciência e Inovação; e Casa Poranga e de Seu Rompe Mato
APOIO CULTURAL: Multifário; Associação Remanescentes de Quilombolas do Torre/Tracuateua; Grupo de Pesquisas PERAU-PPGARTES-UFPA; Academia de Letras do Brasil; ALB-Bragança; Henrique Brito Avocacia.
APOIO INTERNACIONAL: Livraria Independente Gato Vadio (Porto); BEI Film; Escola Superior de Teatro e Cinema - Instituto Politécnico de Lisboa; Associação Nacional de Cinema e Audiovisual de Cabo Verde; Fundação Servir Cinema Cinema - Cabo Verde
PARCERIA: BRAGANÇA: CVC; Pousada de Ajuruteua; Pousada Casa Madrid; Pousada Aruans Casarão; Mexericos na Maré; Paróquia de São João Batista; AUGUSTO CORREA: Escola Lauro Barbosa dos Santos Cordeiro - Patal; EMEF André Alves – Nova Olinda, Augusto Corrêa. PRIMAVERA: Vereador Waldeir Reis; Espaço Cultural Casa da Vó Zinha; Carimbó do Nilo; Associação dos Produtores de Guarumandeua; Associação das Famílias Reunidas do Jabaroca; Grupo de Carimbó Raio se Sol; QUATIPURU: Monóculo da Vovó; Associação Quilombola de Sacatandeua; ANANINDEUA: Centro Cultural Rosa Luxemburgo; BELÉM: Cordel do Urubu; Vagalume Boi Bumbá da Marambaia; Cine Curau; Casa do Poeta Caeté.
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