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A arma do afeto: diálogos entre segurança pública e cinema comunitário no FICCA de Quatipuru

  • Foto do escritor: Francisco Weyl
    Francisco Weyl
  • 26 de ago.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 14 de out.

Na pequena Quatipuru, no nordeste do Pará, o Ponto de Cultura Monóculo da Vovó abriu suas portas para receber a 10ª edição do Festival Internacional de Cinema do Caeté (FICCA), entre os dias 22 e 24 de Agosto de 2025.

Foi apenas um encontro de projeções, debates e oficinas. Em uma roda de conversa que reuniu vozes da comunidade, surgiu um momento que sintetizou a essência do festival: o diálogo entre mundos aparentemente distantes, mas que se reconhecem na busca comum pela vida digna.

Entre os presentes, uma figura se destacou — a Sargento PM Socorro, integrante da ONG Guardiões de Quatipuru. Seu depoimento, mesclando a dureza da farda com a ternura da maternidade, tocou os participantes e mostrou como o cinema, a cultura e a segurança pública podem compartilhar o mesmo espaço de escuta e construção coletiva.

O FICCA em movimento

Criado há uma década, o FICCA nasceu do desejo de descentralizar o cinema e levá-lo a lugares que raramente fazem parte do circuito cultural tradicional. Itinerante por vocação, o festival percorre vilas, comunidades e municípios do nordeste paraense, tecendo redes e deixando rastros de formação e memória.

Este ano, a 10ª edição começou com sessões e oficinas no Patal (18-19/08), seguiu para Nova Olinda, em Augusto Corrêa (20-21/08), e desembocou em Quatipuru (22-24/08). Mais do que exibir filmes, o FICCA promoveu rodas de conversa, oficinas de audiovisual, debates comunitários e encontros intergeracionais, firmando-se como um território de cidadania cultural.

Ao longo desses anos, o FICCA vem criando um repertório de experiências que vai muito além da tela. Em cada município, as sessões abertas atraem crianças, jovens, professores, lideranças comunitárias e pessoas idosas, gerando um mosaico de olhares e memórias. A ideia central é simples: onde houver pessoas, pode haver cinema; e onde há cinema, abre-se uma janela para o mundo.

Quem é a Sargento Socorro

Nascida e criada em solo paraense, Socorro é militar, mãe, avó e cidadã. Atua em Capanema, mas mantém fortes vínculos com Quatipuru, onde participa da ONG Guardiões de Quatipuru — um coletivo dedicado a ações sociais, ambientais e educativas.

Em sua fala, a sargento deixou transparecer a complexidade de seus papéis sociais. “No quartel, eu sou a Sargento Socorro. Ali não existe feminino ou masculino, sou responsável pela tropa, pela escala, pela viatura. Mas quando volto para casa, eu preciso desligar esse personagem e reencontrar a mulher, a mãe, a avó. Se eu trouxer o quartel para dentro de casa, eu não consigo viver em família”, afirmou.

O depoimento ressoou com força porque humanizou uma figura que a comunidade normalmente encontra no exercício da autoridade. Ao compartilhar sua experiência, Socorro deixou claro que a farda não apaga a pessoa. Pelo contrário, a desafia a equilibrar mundos distintos.

A palavra da Sargento

A força de seu discurso estava justamente na franqueza. Em um momento da conversa, Socorro contou como aprendeu a separar os papéis que exerce:

“Eu tenho que treinar, porque meu dia é estressante. No quartel, a gente comanda, dá ordens, pega armamento. Mas em casa eu digo: ‘bom dia, família, cheguei’. Não posso tratar minha filha como militar. Tenho que voltar a ser mãe, esposa, avó. Todo mundo tem personagens, e eu aprendi a viver os meus.”

Esse testemunho desconstruiu a imagem rígida da farda. Diante dos participantes, Socorro não se apresentou como “autoridade”, mas como uma mulher que transita entre universos distintos sem abrir mão de sua humanidade.

Pontes entre cultura e segurança

A fala de Socorro ganhou ainda mais relevância ao se inserir no contexto do festival. Para muitos, ouvir de uma militar que “o corpo policial precisa estar preparado para a vida, e não apenas para o trabalho” foi um aprendizado inesperado.

Esse ponto conecta diretamente a segurança pública com o papel da cultura: ambos lidam com a formação do indivíduo, o cuidado com a comunidade e a produção de sentido coletivo. O encontro entre o cinema do FICCA e a experiência da sargento mostrou que a arte pode abrir frestas de diálogo até nos espaços mais hierarquizados.

Esse tipo de diálogo, que à primeira vista pode parecer improvável, é justamente o que fortalece os laços comunitários. Quando a polícia e a cultura se encontram, o que se constrói não é apenas cooperação, mas confiança. E confiança é a base de qualquer sociedade democrática.

O olhar do FICCA

Para o coordenador do festival, Francisco Weyl, o momento simbolizou o que o FICCA busca desde sua criação: aproximar mundos e construir redes de afeto e de resistência cultural.

“Quando a Sargento Socorro compartilhou sua experiência, ela trouxe para dentro da roda uma visão que rompe com estereótipos e nos fez refletir sobre cidadania. O festival é isso: um espaço onde a comunidade, a polícia, os artistas, os jovens e os mais velhos podem se encontrar e pensar juntos o lugar onde vivem”, afirmou Weyl.

Quatipuru no mapa da cultura

Receber o festival foi, para Quatipuru, mais do que uma atividade cultural: foi um gesto de reconhecimento. Historicamente, municípios do interior ficam fora do circuito cultural do estado. A presença do FICCA, associada à participação de atores locais como a ONG Guardiões de Quatipuru, mostra que é possível construir redes horizontais de cooperação.

Moradores que participaram da roda de conversa destacaram o impacto do evento. “É importante ver que a cultura não está distante da nossa realidade. Quando a sargento fala como mãe e como mulher, a gente se reconhece. E quando o festival traz o cinema para cá, a gente se sente parte do mundo”, disse uma das participantes.

Desafios e perspectivas

O diálogo em Quatipuru mostrou que há muito a avançar na relação entre segurança, cultura e cidadania. O testemunho da Sargento Socorro abriu caminho para pensar o lugar da mulher na polícia, o desafio de conciliar papéis sociais e a possibilidade de uma segurança pública mais humana e integrada à comunidade.

Outro desafio levantado durante a roda foi o da continuidade: como garantir que experiências como esta não fiquem restritas ao momento do festival? Para isso, a articulação com ONGs locais, escolas e coletivos comunitários será essencial. O FICCA, ao circular pelos municípios, abre portas, mas cabe aos atores locais mantê-las abertas.

Além disso, o próprio festival tem diante de si o desafio de ampliar sua rede e consolidar-se como política cultural de base comunitária. A itinerância é um método poderoso, mas demanda recursos, planejamento e, sobretudo, engajamento de quem participa. O encontro com a Sargento Socorro é um exemplo de como essas redes podem se fortalecer.

Conclusão

Ao final da roda, ficou a imagem vívida da Sargento Socorro descrevendo sua rotina: o peso da arma e da escala, seguido pelo momento em que atravessa o portão de casa e anuncia: “Bom dia, família, cheguei.”

Entre o quartel e o sítio, entre a autoridade e a generosidade, entre o fuzil e o afeto, ela encarna o desafio de ser mulher em múltiplas frentes. E o FICCA, ao proporcionar esse espaço de fala, reafirma que o cinema não é apenas tela e projeção: é também roda, escuta e cidadania.

Assim, o festival cumpre sua vocação de itinerância cultural e de produção de encontros transformadores. Em cada município visitado, ele não apenas exibe filmes, mas semeia reflexões. E em Quatipuru, a semente plantada foi a da confiança mútua entre cultura e segurança, entre comunidade e instituições, entre arte e vida.

O futuro certamente cobrará novos desafios. Mas se a lição deixada pela 10ª edição do FICCA é a de que é possível unir mundos tão distintos em torno do respeito e da escuta, então vale repetir: bom dia, comunidade, chegamos — e o cinema chegou para ficar.


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Audiodescrição:A foto mostra duas pessoas sentadas em cadeiras simples, em um ambiente externo à noite, iluminado por luz artificial.

À esquerda, uma pessoa de cabelos longos e cacheados, vestindo boné preto, camiseta escura e bermuda clara, está com o corpo levemente curvado para frente, olhando para as próprias mãos, em um gesto de reflexão.

À direita, outra pessoa, de cabelos presos e óculos, usa camiseta bege com logotipos e bandeira do Brasil na manga, além de calça jeans azul. Ela gesticula com a mão direita levantada, como se estivesse explicando algo ou participando de uma conversa animada.

O fundo mostra uma parede pintada em tom salmão, com uma janela de grades pretas e alguns objetos domésticos próximos — garrafas, vasos e caixas.

A cena transmite um momento de diálogo íntimo e descontraído, possivelmente uma entrevista ou conversa comunitária.


REALIZAÇÃO: X FICCA – Festival Internacional de Cinema do Caeté / Arte Usina Caeté

PATROCÍNIO: Governo Federal/Ministério da Cultura; Governo do Pará/Secretaria de Cultura/Fundação Cultural do Pará, através da PNAB e Lei Semear; da Fundação Guamá, Parque de Ciência e Tecnologia - Guamá; Instituto Sustentabilidade da Amazônia com Ciência e Inovação; e Casa Poranga e de Seu Rompe Mato

APOIO CULTURAL: Multifário; Associação Remanescentes de Quilombolas do Torre/Tracuateua; Grupo de Pesquisas PERAU-PPGARTES-UFPA; Academia de Letras do Brasil; ALB-Bragança; Henrique Brito Avocacia.

APOIO INTERNACIONAL: Livraria Independente Gato Vadio (Porto); BEI Film; Escola Superior de Teatro e Cinema - Instituto Politécnico de Lisboa; Associação Nacional de Cinema e Audiovisual de Cabo Verde; Fundação Servir Cinema Cinema - Cabo Verde

PARCERIA: BRAGANÇA: CVC; Pousada de Ajuruteua; Pousada Casa Madrid; Pousada Aruans Casarão; Mexericos na Maré; Paróquia de São João Batista; AUGUSTO CORREA: Escola Lauro Barbosa dos Santos Cordeiro - Patal; EMEF André Alves – Nova Olinda. PRIMAVERA: Vereador Waldeir Reis; Espaço Cultural Casa da Vózinha; Associação dos Produtores de Guarumandeua; Associação dos Agricultores de Siquiriba; QUATIPURU: Monóculo da Vovó; Associação Quilombola de Sacatandeua; ANANINDEUA: Centro Cultural Rosa Luxemburgo; BELÉM: Cordel do Urubu; Vagalume Boi Bumbá da Marambaia; Cine Curau; Casa do Poeta Caeté.

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COORD. PEDAGÓGICA: ROSILENE CORDEIRO / MARCELO SILVA

COORDENAÇÃO: Francisco Weyl

COORD. PRODUÇÃO: Roberta Mártires

 

 
 
 

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